“O Meu Nome” – Texto sobre a Doença de Alzheimer
“Quente. O sol está tão quente que consigo ver as ondas de calor sobre a recente laje. Talvez tenhamos de adiar o início dos trabalhos, porque afinal, a terra não gosta de ser trabalhada a esta temperatura. Nem nós aguentaríamos.
Sugeres então planificarmos ao pormenor a construção do nosso pequeno éden.
Faço limonada, acrescento-lhe um punhado de gelo e, em seguida disponho num pequeno prato os biscoitos (que com toda a certeza consideras desnecessários, mas tens a delicadeza de não o mencionar).
A cozinha mantém-se relativamente fresca, quiçá devido á pedra da bancada e aos azulejos que cobrem as paredes. Por cima da mesa, o pequeno lanche e papéis, muitos papéis, com desenhos, rabiscos e medições.
Preferia começar primeiramente pelas flores, mas insistes nas ervas aromáticas e far-te-ei a vontade. Não me apetece discutir, mas também não valeria a pena. Talvez tenha a ver com o signo, o teu e o meu.
Passamos rapidamente da arquitectura para a constituição dos vasos. Mas será que o teu conhecimento acerca das ervas se resume aos coentros? Pois fica sabendo que o cebolinho é rico em vitaminas A e C (tal como a salsa e o manjericão) e fica óptimo nas saladas. A hortelã-pimenta é indicada para aliviar crises de estômago, inflamações e dores no geral. Na cozinha, fica fantástica em molhos,sobremesas e bebidas, incluindo o chá. Por favor, não a condiciones ao tempero da canja de galinha!
Talvez procure nalguma livraria um pequeno guia de ervas aromáticas. Embrulho-o em papel pardo e com um bonito fio de corda, prendo-lhe um cartão. Estou a pensar escrever “Com amor, e sabor”. Não soa bem?
É deste plano mental que me chamas à realidade. Desculpa, podes repetir? Não, ainda não comprei os regadores, podes pôr na lista.
E tu tens de ligar aos homens, agora que desistimos da ideia do cimento e optamos pelo jardim e pela horta.
O meu entusiasmo é crescente, em segredo. Sinto-me empolgada com a ideia das noites quentes com cheiro a alfazema e terra molhada, envolvidas em café e conversas na mesa e cadeiras de ferro rendilhado e pintado de branco.
Assim como não nos podemos esquecer dos caminhos em gravilha, e tens de procurar ali nos armazéns se nos dispensam as paletes. Palete, que raio de nome. Nem sei sequer se se escreve assim. A ver se logo procuro na internet a origem do nome, mas decerto é estrangeirismo.
Mal dou por mim, estou de novo envolta em pensamentos longínquos… Já planeámos viagens, compras, mudanças. Planeámos o nosso casamento e o dos nossos filhos. Planeei até deixar-te, mas o meu amor por ti foi sempre maior. E agora vê só, chegamos a esta idade tão cúmplices! Então, depois do jardim, o que planearemos? Já sei, a primeira actividade de ocupação de tempos livres, após a reforma. Só não me peças para fazermos um daqueles cursos de informática para a terceira idade. Se fosse amanhã, optava pelo teatro. Já tentei uma vez, sabes, e não correu nada mal.
Que foi? Já te disse que não, põe lá o raio dos regadores na lista dos afazeres!
E é quando olho para ti, para a tua pele sem brilho, para os teus olhos sem vida, que a realidade endurece o meu coração. Nada é como dantes. Já não podes planear nada sozinho, porque ela acompanha-te mais que eu.
E se a minha reforma ainda não chegou, a tua veio mais cedo do que o desejado, e eu sinto que já não tenho forças para fazer bem o meu papel. De esposa, de companheira, de enfermeira.
Podemos voltar aquele verão, aquele lanche e aqueles planos? Ainda não temos o nosso jardim!
Volta para mim, chama-me pelo nome. Que saudades de te ouvir dizê-lo!
Vamos planear algo, os dois, apenas por prazer, e não como trabalho de casa prescrito pelas tuas terapeutas.
Chama-me pelo nome…”
Acerca deste texto sobre a Doença de Alzheimer
O texto apresentado narra um desabafo de uma cuidadora de um doente de Alzheimer, que quando deparada com a realidade da doença, passa a assumir vários papéis. Inegavelmente a demência não afecta só quem dela padece, há que cuidar de quem cuida… (Menção Honrosa no 16º Concurso de Textos de Amor Manuel António Pina, uma iniciativa do Museu Nacional da Imprensa.)
Rita Isabel Antunes Reis Ventura
Colaboradora da Fisiolar, Licenciada em Terapia Ocupacional em 2004, pela Escola Superior de Tecnologias da Saúde do Porto.
"Esta Terapeuta nunca perdeu o gosto pela escrita, que a acompanha desde tenra idade".