Praias para todos?
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Sabia que as idas à praia são prescritas pelos médicos desde o século XVIII? E que o hábito de passar os tempos livres junto ao litoral vem desde a Civilização Romana? De facto, a água do mar tem vindo a ser estudada desde a Antiguidade, sabendo-se, hoje em dia, que é um remédio natural com comprovados benefícios nos sistemas respiratório, imunitário e circulatório, no combate a problemas musculares, alergias, stress e depressão, no abrandamento do reumatismo, para além de ajudar à cicatrização da pele e do próprio sal, por ser um esfoliante natural, favorecer o rejuvenescimento celular.
Está visto que não faltam boas razões para ir a banhos, mas será que as praias portuguesas são para todos? Será que, em pleno século XXI, qualquer cidadão, independentemente da sua localização, idade ou mobilidade, consegue aceder e desfrutar de saudáveis banhos de sol e mar? E as pessoas com mobilidade reduzida, terão elas a sua autonomia, conforto e segurança garantidas nas zonas balneares pelo país?
Iniciativa "Praia Acessível-Praia Para Todos"
Foi para dar resposta a estas questões que, em 2005, o Instituto Nacional para a Reabilitação, em conjunto com a Agência Portuguesa do Ambiente e o Turismo de Portugal, criou a iniciativa “Praia Acessível-Praia Para Todos”. Neste programa, do qual os municípios com águas balneares e os respectivos concessionários privados fazem parte, existem critérios obrigatórios que determinam a classificação de “praia acessível” e sugestões de boas práticas (por exemplo, um equipamento anfíbio para o banho é, discutivelmente, considerado não obrigatório) sendo que, no passado ano de 2021, contavam-se 223 “praias acessíveis” (198 no Continente, 17 nos Açores e 8 na Madeira), aproximadamente um terço do total de praias nacionais, costeiras e interiores, que ronda as 700 praias.
Sabemos que a questão das acessibilidades é extremamente complexa, sobretudo no que toca aos recursos naturais que se querem o mais orgânicos possível! afinal, o que torna uma praia efectivamente acessível à população com mobilidade reduzida?
#1 Estacionamento gratuito
O primeiro passo, no meu entender, prende-se com a garantia de lugares de estacionamento reservados para as pessoas com deficiência, identificando o veículo com o respectivo dístico, localizados à entrada da praia, mas atenção: 1 lugar reservado num estacionamento com 20 ou 30 vagas é manifestamente insuficiente! Neste critério específico, atente-se à Praia da Figueirinha, em Setúbal, que apresenta 6 lugares de estacionamento para o efeito.
#2 Acesso à praia sem obstáculos
Sem qualquer dúvida de que outro critério essencial para uma praia com acessibilidades é o de uma rede de percursos pedonais livre de obstáculos e interrupções, interligando a zona de estacionamento com a zona de sol e sombras, restaurantes/quiosques, duches, bebedouros, casas-de-banho, posto de primeiros socorros e demais espaços de apoio em piso firme, contínuo e estável. Notem-se os passadiços da Praia de Vilamoura, em Loulé, que são amplos e livres de quaisquer barreiras.
#3 Passadeiras até à areia molhada
Este item é polémico, pois muitas destas praias apresentam passadeiras que terminam na areia seca, o que será suficiente apenas para alguns. Se as ditas passadeiras terminam longe do mar, o obstáculo “areia” mantém-se ! só quem nunca se deslocou numa cadeira-de-rodas, com o auxílio de canadianas ou quem nunca empurrou um carrinho de bebé (haverá algum adulto que não tenha passado ao menos um dia com mobilidade condicionada?) pode ter dificuldade em ver o impacto positivo de uma real passadeira até à areia firme da beira-mar.
#4 Colmo+espreguiçadeira de fruição gratuita
Este item então… ui. É sabido que apenas é recomendada como boa prática a gratuitidade do colmo e da espreguiçadeira, o que faz com que fique ao critério do concessionário cobrar ou não à pessoa com deficiência (pcd) pelo uso do material. Já me aconteceu, num dia, usufruir destes artigos de forma gratuita e, no dia seguinte, sem qualquer explicação, me serem cobrados. Já os vi serem gratuitos para a pcd e respectivo acompanhante e, semanas depois, serem cobrados ao acompanhante.
Sobre esta desigualdade e ausência de regulamentação, gostava de vos fazer reflectir sobre o seguinte: enquanto não estiver garantida a equidade e a efectiva autonomia no acesso à praia, não deveria ser cobrado o uso de um serviço para o qual a própria pcd não tem condições de usufruir sem ajuda. A partir do momento em que estejam garantidas todas as condições de acesso, dignidade, segurança e independência nas praias (ou nos teatros ou nos festivais de verão ou nos museus…), deixamos de insistir neste ponto.
#5 Tiralô
O tiralô é uma cadeira anfíbia que permite tanto andar no solo como flutuar na água, auxiliando desta forma nos banhos de mar, o que torna a praia um local realmente democrático e inclusivo. No meu entender, devia ser artigo obrigatório numa “praia acessível” pois não é comum alguém estar na praia e não tomar banho ! mas, se tal acontecer, que seja por opção, e não porque o tiralô está partido, com um dos pneus furados ou simplesmente porque é inexistente numa praia “para todos”. Atente-se à Praia de Carcavelos, em Cascais, que tem não um, mas dois tiralôs, possibilitando que mais do que uma pcd se banhe ao mesmo tempo (inovador!)
#6 WC acessível
Por fim, o último critério para uma “praia acessível” é a necessidade inequívoca de casas-de-banho com acessibilidades. Isto é: livres de obstáculos, permitindo a rotação de 360º de uma cadeira-de-rodas, com lavatórios sem pés, barras de apoio junto à sanita, dispositivo de emergência de fácil activação e com todos os acessórios, tais como saboneteiras, cabides e secadores de mãos dentro da faixa de alcance acessível.
Conclusão
É justo reconhecer o desenvolvimento das acessibilidades que o programa “Praia Acessível-Praia Para Todos” tem sido impulsionador nos últimos 15 anos, tornando possível enumerar zonas balneares com excelentes acessos um pouco por todo o país – nomeadamente a Praia de Vilamoura, em Loulé, a Praia da Figueirinha, em Setúbal (vencedora, aliás, do Prémio “Praia +Acessível” em 2021), a Praia de Carcavelos, em Cascais, a Praia do Osso da Baleia, em Pombal, a Praia da Aguda, em Vila Nova de Gaia, a Praia do Homem do Leme, no Porto e, sem esquecer os apreciadores de praias fluviais, as praias das margens do Grande Lago Alqueva, no Alentejo – assim como é de realçar o contributo da Associação Salvador.
App "+Acesso Para Todos"
A Associação Salvador, criou a app “+Acesso Para Todos”, uma aplicação gratuita que permite classificar as acessibilidades de qualquer espaço, público ou privado, interior ou exterior, partilhar bons exemplos e denunciar aqueles que não reúnem as condições mínimas de acesso a pessoas com mobilidade reduzida. E é claro que as nossas ricas praias também estão incluídas: da próxima vez que queira ir a uma zona balnear com acessibilidade garantida ou se, após um dia épico de praia, pretenda deixar um comentário numa zona balnear ainda não avaliada, utilize a app “+Acesso Para Todos”, juntando a sua à nossa voz e contribuindo para o maior sistema de avaliações de acessibilidades em Portugal!
Ainda assim, há muito a fazer pela promoção da inclusão social através do lazer e do desporto (sim, porque na praia, além de banhos de sol e de mar, também se pode nadar, surfar, mergulhar, remar…) e só alcançaremos a meta de uma praia/ uma rua/uma cidade/um país acessível e inclusivo a todos, se todos, sem excepção, sairmos de casa. Se todos, sem excepção, nos fizermos ver e ouvir: a elogiar o que já foi feito e a sugerir melhorias para o que falta fazer. Se todos, sem excepção, lutarmos por mais e melhores acessibilidades no nosso bairro, na nossa escola, no nosso emprego, no nosso jardim, na nossa praia. Porque as acessibilidades são uma causa que diz respeito a todos. Sem excepção.
por Joana Reais
Embaixadora de Acessibilidades da Associação Salvador.
Joana Reais
Joana Reais é cantora, professora e pesquisadora artística. Especialista em Inclusão pela Arte (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, BR, 2019); Mestre em Artes Performativas: Teatro-Música (Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico da Universidade de Lisboa, PT, 2014); Licenciada em Design de Comunicação (Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, PT, 2009). Integra a Associação Portuguesa de Música nos Hospitais e Instituições de Solidariedade desde 2014, a plataforma artística on-line brasileira “Adote o Artista” desde 2020 e a Equipa de Acessibilidades da Associação Salvador desde 2022.